Principais gargalos na entrega de valor pela saúde suplementar e como solucioná-los
DRG Brasil
Postado em 23 de setembro de 2020 - Atualizado em 13 de maio de 2024
Os custos na saúde vêm crescendo devido a fatores como novas tecnologias, envelhecimento da população e a manutenção de um modelo de remuneração retrógrado. A saúde baseada em valor traz transparência e confiança à relação entre os atores da saúde suplementar.
O sistema de saúde suplementar foi regulamentado pela lei 9.656 de 1998. Essa lei, também chamada de “lei dos planos de saúde”, definiu as segmentações de cobertura da saúde suplementar e também uma cobertura ampla ao dispor em seu artigo 10 que os planos de saúde devem garantir a cobertura de todas as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), respeitadas as segmentações e as exigências mínimas estabelecidas no artigo 12 da mesma Lei. Apenas algumas exclusões são permitidas, sendo elas:
tratamentos clínicos ou cirúrgicos experimentais;
procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos,
órteses e próteses para fins estéticos,
inseminação artificial;
tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética;
tratamentos ilícitos ou antiéticos, definidos sob o aspecto médico, ou não reconhecidos pelas autoridades competentes;
casos decorrentes de cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente.
Além disso, é vedado às operadoras de planos de saúde limitarem o número de consultas médico-ambulatoriais e o tempo de permanência em regime de internação. Dois anos após a promulgação dessa lei, foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que ficou a cargo de determinar a cobertura mínima dos procedimentos para tratar toda a amplitude de doenças cobertas na determinação da Lei 9.656/98. A lista de procedimentos cobertos chama-se “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”, e engloba além de procedimentos, exames e tratamentos com cobertura obrigatória pelos planos de saúde, sendo revisto a cada dois anos.
As principais falhas estruturais no setor de saúde suplementar: desafios e oportunidades
Nos últimos anos o IESS (Instituto de Estudos da Saúde Suplementar) estudou as principais falhas na cadeia da saúde suplementar que precisam ser corrigidas para possibilitar a sustentabilidade do sistema. Identificou-se que é necessário:
mudar o modelo de remuneração "fee-for-service” baseado em “conta aberta”;
tornar transparente indicadores qualidade e segurança do paciente, principalmente por parte dos prestadores de serviço de saúde;
tornar transparente os preços de insumos (materiais, medicamentos, equipamentos etc.) e de serviços de assistência à saúde;
elaborar critérios de custo-efetividade para a tomada de decisão na incorporação de novos itens no rol mínimo da ANS;
combater o uso desnecessário de serviços e avaliar se o número de equipamentos privados não está acima do necessário;
criar legislações que tratem explicitamente as fraudes em saúde como atos ilícitos, estabelecidos em código penal e com punições severas aos comprovadamente culpados.
O modelo de remuneração baseado em “Fee-For-Service” (FFS) e o estímulo ao desperdício
Atualmente, há dois extremos de modelo de pagamento de prestadores: o modelo de pagamento fee-for-service, que implica que os pagamentos estão relacionados ao volume e a intensidade de serviços médicos prestados e os modelos de pagamento prospectivos, como por exemplo o pagamento por grupos relacionados pelo diagnóstico (ou “Diagnosis Related Groups – DRG”) cujos pagamentos por paciente são fixados prospectivamente independentemente da intensidade ou do custo dos serviços prestados.
No Brasil, é predominante o pagamento de serviços prestados em saúde chamado "fee-for-service” baseado em "conta aberta". No FFS, o nível de reembolso do hospital aumenta com a quantidade de realização de procedimentos, exames, internações e reinternações, quer sejam para contribuir ou não para melhores resultados para os pacientes – indo ao encontro da remuneração baseada em valor. O pagamento dentro do mindset chamado de value-based health care (VBHC), ou cuidado baseado em valor, leva em consideração justamente o equilíbrio entre:
a percepção do paciente quanto à experiência assistencial,
tratamentos adequados que proporcionem desfechos clínicos de alta qualidade,
e custos adequados durante toda a jornada do cuidado.
Corre-se o risco, com o fee-for-service, de recompensar erros, complicações e resultados ruins, porque cria-se uma demanda por mais serviços que possam ser faturáveis. Além disso, alguns procedimentos e serviços são mais lucrativos do que outros, o que pode levar ao excesso de investimentos em unidades que realizam serviços que são generosamente reembolsados, criando excesso de capacidade e pressões para demanda induzida por tais serviços. Também pode ocorrer sub-investimento em serviços que têm um reembolso menor, mesmo aqueles que contribuem para melhores resultados para os pacientes, que são preventivos e têm potencial de evitar custos muito mais elevados.
Portanto, esse sistema não inibe desperdícios e tende a absorver, na precificação, as falhas de mercado provocadas por assimetria de informações. São essas falhas que permitem que um determinado insumo de saúde, de uma mesma marca, tenha dois preços totalmente diferentes dependendo de quem o compra e da sua localização. O inverso de desperdício, por sua vez, é o cuidado baseado em valor (VBHC), ou seja, resultados assistenciais que importam para o paciente dividido pelo custo dessa assistência, .
Ainda assim, é relevante citar que o FFS é um modelo que pode ser adequado em alguns casos específicos, como os que apresentam baixa previsibilidade em relação aos desfechos (por exemplo: internação de neonato em UTI). Apesar desses casos específicos, o reembolso de serviços sem restrições ou consideração da qualidade pode promover o uso excessivo de serviços de forma que o cuidado com a saúde não seja coordenado. Isso ocorre porque:
os consumidores confiam nos prestadores para obter informações sobre sua necessidade de serviços;
e os prestadores, por sua vez, têm um incentivo financeiro para aumentar o volume de serviços.
Estudo mostra evidências de que isso ocorreu em países tão diversos como a Holanda e China, e ainda em países do leste europeu. Os autores estimaram que o modelo de pagamento fee-for-service gerou, em média, um aumento de 2% a 7,5% no número de admissões hospitalares e um aumento de 18% a 19% no gasto total com saúde, somando público e privado, em comparação ao período em que esses países passaram a adotar um modelo de pagamento hospitalar prospectivo.
Há indícios de que, quando os incentivos fornecidos pelo modelo de pagamento são mudados, há alteração na tendência de crescimento dos gastos com saúde. É possível que isso seja um indicativo de que os países que adotam majoritariamente o fee-for-service têm gerado incentivos para alto consumo, gerando assim maior crescimento dos custos médico-hospitalares.
Há evidências teóricas da eficácia das reformas de modelos de pagamento de prestadores para evitar as falhas de mercado e de governo nos sistemas de saúde e evidências empíricas, principalmente em países desenvolvidos, que associam o pagamento prospectivo com uma taxa mais lenta de crescimento dos gastos em serviços de saúde. Os serviços que mais têm resposta positiva com a mudança para o modelo prospectivo são os que eram mais rentáveis sob o modelo de pagamento fee-for-service, especialmente aqueles relacionados a medicamentos caros e procedimentos de alta tecnologia. Portanto, a sustentabilidade do sistema de saúde privado brasileiro está relacionando intrinsicamente com a necessidade de uma mudança do modelo de pagamento.
A importância da transparência e seu impacto na qualidade do cuidado e na segurança do paciente
O desenvolvimento de um sistema de saúde baseado na transparência e na entrega de valor auxilia o combate às fraudes. A implementação da transparência pode ocorrer em todos os segmentos do sistema, como:
na área contábil por meio da informatização do sistema (de hospitais, operadoras e fornecedores);
no atendimento ao paciente utilizando prontuários eletrônicos;
na divulgação de dados do setor para o público em geral (dados financeiros, epidemiológicos, indicadores de qualidade hospitalar, das operadoras e dos médicos e dados da estrutura física).
Com a divulgação dessas informações é possível:
analisar se o setor de saúde suplementar está sendo eficiente ou não
acompanhar onde os gastos estão sendo realizados de forma adequada,
avaliar se o setor está apresentando eficiência, qualidade e segurança na prestação de serviços ao paciente.
O Brasil, atualmente, não possui uma legislação que regula a necessidade de transparência para a cadeia de saúde com indicadores como ocorre nos Estados Unidos. O governo norte-americano, por exemplo, criou a lei Sunshine Act que tem como objetivo trazer transparência para o setor de saúde dentro das relações entre médicos e distribuidores de medicamento. Através dessa lei é possível que os pacientes decidam qual médico escolher por meio de indicadores que estão disponibilizados online no site do governo Center for Medicare & Medicaid Services (informação verbal).
No Estudo Especial do IESS escrito por Renato Couto em 2016 “Erros acontecem: A Força da transparência no enfrentamento dos eventos adversos assistenciais em pacientes hospitalizados”, foi estimado o impacto dos eventos adversos que ocorrem no Brasil, tanto no SUS quanto na Saúde Suplementar. O estudo relata que durante a assistência podem ocorrer erros que levam a eventos adversos e que afetam diretamente a saúde do paciente e sua experiência no cuidado hospitalar. Estas condições adquiridas, não determinadas pelas condições clínicas de base do paciente, podem causar mortes, sequelas definitivas e transitórias, sofrimento psíquico, além de elevar o custo assistencial.
Outro estudo, realizado nos Estados Unidos, intitulado “Errar é Humano”, pesquisou a incidência de eventos adversos em hospitais. Este estudo verificou que a população hospitalizada apresentava em eventos adversos ocorriam em 3,7% do total das internações, sendo 69% atribuíveis a erros preveníveis e 27,6% à negligência. Embora 70,5% dos eventos determinassem incapacidades com duração menor que seis meses, 13,6% resultavam em morte e 2,6% causavam sequelas irreversíveis. As consequências da insegurança do paciente vão além dos óbitos e inclui a morbidade e formas mais sutis de prejuízos como a perda da dignidade, do respeito e o sofrimento psíquico. No mundo, anualmente, ocorrem 421 milhões de internações com cerca de 42,7 milhões de eventos adversos.
Ausência de transparência sobre preços de insumos (materiais, medicamentos, equipamentos etc.) e serviços de assistência saúde na saúde suplementar
É bastante publicitado que existe um sério problema no mercado brasileiro de saúde relativo às falhas de mercado e assimetria de informações. Como foi destacado no estudo "A cadeia da saúde suplementar no Brasil", produzido pelo Insper, competição imperfeita, oligopólio diferenciado, assimetria de informação e corrupção (que alavancam os custos de OPMEs), combinadas ao atual modelo de remuneração, geram as condições atuais para potencializar os custos de saúde no País. Apenas para citar um exemplo, um único modelo de prótese de quadril pode custar de R$ 2.282 a R$ 16.718, sendo que na formação deste preço entram: comissões de comercialização, sobrepreço aplicado por hospitais, lucro de distribuidores, tributos e até prêmios para médicos.
A existência de incentivo financeiro para a adoção de procedimentos mais complexos é um caso grave, mas, infelizmente, ocorre no mercado brasileiro de saúde.
A remuneração do médico não cria incentivo à qualidade, ao contrário, pode favorecer sobreutilização e maiores custos para o sistema como um todo. O médico não presta serviço aos fornecedores de próteses de joelho ou a outro ofertante de Materiais e Medicamentos. O médico presta um serviço ao paciente e, em razão disso, é remunerado pela operadora de planos de saúde. Não há relação financeira entre fornecedores e médicos, sob pena de haver graves prejuízos ao tratamento do paciente e aumento de custos para toda a cadeia de saúde suplementar.
Ausência de critério de custo-efetividade para se decidir sobre a incorporação de novos itens no rol mínimo da ANS
A adoção de novas tecnologias é um dos principais fatores que impulsionam os custos de saúde no mundo. Neste item será apresentado dois países que estão avançados nesse quesito que são os Estados Unidos e África do Sul para realizar uma comparação com o Brasil.
Nos Estados Unidos, estima-se que entre 27% e 48% do crescimento dos gastos com saúde desde 1960 foi devido às novas tecnologias. Além disso, estudos mostram que a incorporação de novas tecnologias é impulsionada pelo aumento de renda da população e pela maior taxa de cobertura de seguros saúde.
Na África do Sul, a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) é realizada a partir dos registros de todas as novas tecnologias e medicamentos no Conselho de Controle de Medicamentos (Medicines Control Council – MCC) e qualquer violação a este regulamento pode acarretar até 10 anos de prisão. Nesse país existe um Comitê Hospitalar para o Controle de Custo que exige que medicamentos mais novos e mais caros, assim como novas tecnologias e procedimentos de saúde, comprovem que:
sejam mais eficientes que os produtos existentes;
causem menos efeitos adversos;
reduzam despesas de saúde;
façam estudos pós- comercialização.
As políticas de seguro de saúde para o controle do aumento de preços de novas tecnologias na África do Sul utilizam como principal ferramenta a política clínica para controlar os fatores de custos. Ou seja, essas políticas clínicas adotam a análise de Medicina Baseada em Evidências, além de análise de relação de custo e benefícios e acessibilidade econômica, para controlar os preços do sistema de saúde.
Ao observar o cenário no Brasil em relação a saúde suplementar, verifica-se que é grave. Apesar de haver algumas discussões envolvendo estudos de efetividade e econômicos, a utilização da Avaliação das Tecnologias em Saúde ainda é incipiente quando comparada ao setor público e não há indícios de que esses estudos devam se tornar obrigatórios no setor privado. A incorporação de novas tecnologias que trazem pouco benefício para o paciente pode ser onerosa e sem necessariamente beneficiar o paciente e melhorar os indicadores de saúde. Isso acontece porque ao inserir novas tecnologias nos serviços hospitalares ou ambulatoriais, essas inovações podem levar a uma maior utilização de recursos humanos, mais fornecimento de material, treinamento especializado e equipamentos.
Sobreoferta de serviços e equipamentos
A realização desnecessária de serviços é outra fonte que aumenta os custos em saúde e computam os desperdícios, como exames realizados duas vezes, exames realizados mas não retirados, gastos com materiais e exames não necessários etc.
O excesso de equipamentos, como aparelhos de ressonância magnética e mamógrafos, de manutenção cara e normalmente sub ou super utilizados, é outra fonte de desperdício.
Ausência de legislação que enquadre como crime a fraude aos planos de saúde e, por conseguinte, aos seus beneficiários
O Brasil presenciou, nos últimos anos, um grande volume de denúncias a respeito da chamada “Máfia das Órteses”. O Congresso Nacional instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o tema e um grupo de trabalho interministerial envolvendo as agências reguladoras foi criado para combater essas práticas ilícitas.
Porém, para combater as fraudes em saúde e outras práticas ilegais é importante a criação de legislações que tratem explicitamente as fraudes como atos criminosos, estabelecidos em código penal e com punições severas aos comprovadamente culpados. Porque, hoje, muitas dessas práticas são consideradas apenas desvios de conduta numa perspectiva puramente ética.
É evidente que tais atos são praticados por uma minoria de profissionais da área de saúde. Não se deve, em nenhuma hipótese, criminalizar toda uma categoria de profissionais em virtude dos desvios de poucos. Mas também é recorrente a crítica no setor de que associações de classes e representativas de algumas das categorias envolvidas nas fraudes não tomam medidas mais duras para combater as práticas.
Outra medida seria a adoção, em caráter de urgência, de legislações que obrigam a publicidade de relações comerciais entre agentes da cadeia de saúde, especialmente em casos de potencial conflito de interesses. E, novamente, que se estabeleçam punições severas a quem descumprir essas práticas.
A legislação severa que incentiva a transparência nos Estados Unidos e na União Europeia tem propiciado a entidades representativas do setor de saúde o acionamento, judicialmente, de empresas fabricantes e distribuidores de órteses e próteses por práticas desleais e lesivas ao mercado brasileiro. Essa lição pode e deve ser aprendida pelas autoridades brasileiras e aplicada pelas organizações locais. Sem isso, as fraudes continuarão consumindo recursos financeiros e vidas na saúde do Brasil, impedindo a o cuidado baseado em valor (VBHC).
Então, o que podemos concluir?
Os custos na saúde vêm crescendo devido a fatores como a inserção de novas tecnologias, envelhecimento da população e, também, devido a manutenção de um modelo de pagamento retrógrado, o fee-for-service, no qual visa a criação de demanda de procedimentos em saúde para a obtenção de receita.
Analisadas as principais falhas estruturais da saúde suplementar, observa-se a necessidade de:
um novo modelo de pagamento para a saúde baseado em valor;
incorporação de tecnologias fundamentadas em estudos de custo-benefício;
transparência nas relações entre os componentes da cadeia produtiva de saúde.
Fica claro que essa discussão que o sistema de saúde suplementar tem uma grande importância para a sociedade brasileira e uma enorme capacidade de entrega de valor em saúde para a população, porém ainda apresenta importantes assimetrias que precisam ser resolvidas para que o sistema garanta sua sustentabilidade e a elevada geração de valor para o usuário.
Direitos autorais: CC BY-NC-SA Permite o compartilhamento e a criação de obras derivadas. Proíbe a edição e o uso comercial. É obrigatória a citação do autor da obra original.
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