Entre os grandes desafios determinados pela pandemia está o controle de Infecções Relacionadas à Assistência. Este cenário traz uma significativa responsabilidade aos profissionais de saúde na definição das práticas mais seguras a serem adotadas por hospitais e operadoras.
No início da
pandemia, a transmissão por gotículas e aerossóis do trato respiratório era a
única via conhecida, além do contato com as superfícies contaminadas por estes
materiais biológicos. Mas o vírus tem sido isolado de outras topografias e
líquidos corporais, por exemplo, peritônio, placenta, sêmen e fezes. O que se
sabe hoje sobre as vias de transmissão?
Outra questão muito
significativa foi o reconhecimento de que o vírus é transmitido na fase
pré-sintomática. O que isto representa em termos de risco de transmissão e medidas
para o controle e prevenção da disseminação do vírus?
À luz da
epidemiologia atual, estima-se que 80% das pessoas infectadas evoluem com
formas leves da Covid-19, e os demais 20% vão apresentar diferentes e
crescentes níveis de gravidade. Já está bem definido que há subpopulações de
indivíduos mais suscetíveis a evoluir com as formas mais graves da Covid-19,
como pessoas mais idosas e aquelas portadoras de doenças crônicas. Mas qualquer
indivíduo é suscetível a adquirir a Covid-19, correto? Quais são as diferenças
observadas entre as diferentes faixas de idade em termos de gravidade e
mortalidade?
Focando mais agora
nas medidas recomendadas para a prevenção da transmissão do SARS-CoV-2 durante
a assistência. A prática regular de higienização das mãos com água e sabão e/ou
a fricção com álcool a 70% está mais do que nunca indicada em todas as
situações de risco de contaminação, e é uma atitude que não gera dúvidas. O
distanciamento entre pessoas também é uma recomendação já bem compreendida.
Porém, há alguns pontos que nem sempre estão muito claros para os
profissionais. Por exemplo, no ambiente hospitalar:
- Todas as pessoas em um hospital devem usar máscaras? Quem deve usar
máscara cirúrgica e quando é viável o uso de máscara de tecido?
- No que consiste uma triagem para detecção de possível caso suspeito e
quem deve ser triado?
- Quais são as áreas do hospital onde deve ser implantado o sistema de
triagem?
- Se houver suspeita de Covid-19, qual a orientação a ser dada à pessoa
suspeita, incluindo o profissional de saúde exposto?
- O que caracteriza um procedimento como gerador de aerossol, que é a via
mais documentada como a principal forma de transmissão do vírus? Vocês poderiam
dar alguns exemplos desses procedimentos?
- Quais os EPIs corretos que devem ser utilizados pelos profissionais
envolvidos em procedimentos geradores de aerossol?
Muito tem-se falado - e temido - em relação a escassez de recursos críticos, entre eles a máscara N95. O que seria uso prolongado e estendido deste item, como é recomendado pelo CDC nos Estados Unidos? É possível reprocessar estas máscaras? E o fit test? Há alternativas à máscara N95?
Sabemos que a grande
maioria dos hospitais brasileiros não dispõe de áreas de isolamento
respiratório com pressão negativa. Quais seriam as medidas de contingência, por
exemplo, nas unidades de terapia intensiva, setor de emergência e bloco
cirúrgico onde há maior chance de ocorrer procedimento gerador de aerossol? É
viável, ou faz sentido, a “descontaminação do ar” com dispositivos de luz
ultravioleta?
Na Nota Técnica
06/2020 da Anvisa, entre as cirurgias ou procedimentos com potencial risco para
aerossolização com partículas infectantes estão as cirurgias abdominais com
acesso ao trato gastrointestinal laparoscópicas ou abertas, e procedimentos de
anestesiologia. Inclusive, nesta nota técnica, a Anvisa recomenda que se
paciente triado for assintomático para sintomas respiratórios, e se submetido a
cirurgia com risco de aerossolização, todos os profissionais envolvidos devem
usar a máscara N95. Vocês poderiam nos explicar um pouco mais esta
recomendação? Pode-se entender que todo paciente, se não houver confirmação do
estado de não portador da Covid-19 deve ser abordado como potencial suspeito em
procedimentos de risco?
Os hospitais
estruturaram áreas específicas para recebimento de pacientes suspeitos e para
pacientes confirmados com a Covid-19. São áreas e equipes exclusivas dedicadas
à assistência a estes pacientes. Uma questão muito importante é quando indicar
a suspensão das medidas de isolamento para a Covid-19. Quais os critérios que
devem ser usados? Baseados em testes laboratoriais (RT-PCR) e clínicos (tempo
de evolução da doença e melhoria dos sintomas)? Quais as limitações e cuidados
ao interpretar o resultado da RT-PCR? Há algum valor os testes de anticorpos
para suspensão do isolamento em nível hospitalar?
No paciente
hospitalizado, quando indicar terapêutica com antibacteriano para o paciente
Covid-19 suspeita ou confirmada? Há indicação de iniciar antibioticoterapia
precoce? Há algum esquema terapêutico empírico recomendado?
E, à luz do
conhecimento atual, o que se sabe sobre medicamentos específicos para o novo
coronavírus? Temos observado discordâncias entre as publicações sobre este
tema: hidroxicloroquina, ivermectina, efavirenz... existe potencial indicação
de uso clínico? Quais os riscos?
Para conversar sobre esse cenário, o DRG Brasil conversou com dois renomados infectologistas: o Dr. Jaime Rocha (Diretor de Prevenção e Promoção à Saúde da Unimed Curitiba) e a Dra. Silvana Ricardo (Chefe do Serviço de Epidemiologia e Controle de Infecção Hospitalar da Rede Mater Dei de Saúde) em um programa ao vivo.
Veja, abaixo, as falas de destaque deste programa:
Tania Grillo: Hoje em especial nos vamos tratar de uma área que é de extrema delicadeza e de fundamental importância no controle da epidemia do novo coronavírus, nós vamos falar sobre aspectos principais e aquilo que está mais angustiando os profissionais de saúde que estão à frente das comissões de controle de infecção hospitalar e na assistência ao paciente. O que é o mais desafiador no controle de infecção hospitalar em tempos de pandemia da Covid-19?
Silvana Ricardo: Na nossa rede de hospitais, desde
que começamos nossas reuniões internas, nosso comitê de crise e obviamente
aquele conjunto de informações que mais atrapalhou no início, do que ajudou me
preocupou muito com o que era oferecido para nós, principalmente relacionado ao
conjunto de EPI’s que não fazia sentido, todo mundo estava pressionando de como
iríamos fazer se tivéssemos que basear no modelo que vinha sendo empregado por China
e Coréia. Existe um aspecto que é muito íntimo para nós (controle de infecção)
que é a avaliação de risco e controle de barreiras, além de trabalhar com o
planejamento de ações baseada em riscos, em hierarquia e controles. Nós temos
que entender que EPI é fundamental, ninguém nega isso, mas o EPI sozinho que
foi a pressão inicial de todos, não pode ser empregado sozinho, então medidas
administrativas e medidas de engenharia devem também ser aplicadas. Está claro
para o controle de infecção o que nós não conseguimos eliminar ou substituir,
conforme a hierarquia de controles. Então diante de toda pressão que estávamos
sofrendo nos permitiram pensar nos controles de engenharia, ou seja, até que
nível nós tínhamos de quarto de isolamento com condição adequada, a instituição
de barreiras físicas, visores,
segregação física e várias medidas administrativas também que implantamos
– como estabelecer fluxos, protocolos, segregação, gerenciamento de profissionais.
Nós fomos atrás das
principais referências do mundo e utilizamos praticamente as orientações que são
largamente empregadas. Trabalhamos então com aqueles 3 princípios: limitar a
entrada do vírus na instituição, isolar rapidamente suspeitos ou sintomáticos e
proteger profissionais de saúde. Estas ações nos ajudaram a entender bem a
situação e desmistificar o paradoxo de trabalhar com o novo coronavírus.
Lembrando que várias medidas e conteúdo sem nenhum fundamento vinham sendo
empregados e disseminados por diversas organizações e sociedades, trazendo
tumulto dentro dos hospitais. Para que os profissionais pudessem se sentir
seguros para trabalhar, tivemos um gasto de energia muito grande.
Tania Grillo: Jaime, seria interessante
compartilhar conosco como tem sido o trabalho da ANVISA. Já percebemos um
avanço muito grande nas diretrizes que foram passadas inicialmente. Além disso,
como tem sido este planejamento?
Jaime Rocha: De fato não existe uma medida única
que vai resolver tudo. A Covid realmente tem sido um desafio muito grande e eu
acho que a maior tarefa foi a organização (ANVISA) para conseguir convocar as
pessoas de especialidades muito diferentes para tentar trabalhar em conjunto e à
distância e numa velocidade que a gente nunca trabalhou antes de um tema que a
gente não conhecia.
Pela primeira vez houve
abertura na ANVISA para conversar e entender que é possível produzir documentos
com a participação de especialistas que não são funcionários públicos da
empresa. Isso é um grande avanço, e esperamos que isso fique como um legado pós-covid,
porque às vezes saem notas técnicas maravilhosas, mas de difícil aplicação, ou
saem notas técnicas, que nós técnicos temos dificuldade de entender e aplicar.
Todo este trabalho tem
sido desenvolvido numa escala jamais vista antes: EPI, cirurgia, exame,
tratamento e assim por diante. Nós fazemos uma nota técnica hoje e semana que
vem já tem que fazer uma atualização e assim sucessivamente. Tirando os
profissionais que lidam com essa situação no dia a dia e os que estudam, muitos
têm dificuldade de entender esta atualização constante, e que existem doenças
que estão além da nossa capacidade humana. Espera-se uma velocidade de resposta
impossível de se dar, mas querem uma vacina para a semana que vem.
Tania Grillo: Silvana, gostaria que você
comentasse sobre a importância nos hospitais de se organizarem, com uma
liderança dos membros do controle de infecção hospitalar, nos comitês de crise
da Covid. Como tem sido a experiência da Rede MaterDei?
Silvana Ricardo: Nós temos um comitê de crise na rede
já instituído, onde funciona até mesmo para outras situações. Ele possui várias
entradas e algumas delas são as pandemias e os surtos comunitários, como o
sarampo, mas tudo com menor magnitude do que agora. Antes de ser decretada emergência
internacional, a primeira reunião de entrada veio do controle de infecção da
rede. Nós então fizemos um trabalho de acompanhamento, análise e sentimos o que
poderia vir, mas já acionamos o comitê que é constituído por RH, logística,
suprimentos, diretoria, educação, administrativo, diretoria médica da parte
técnica, engenharia e TI.
Tania Grillo: Queria compartilhar algumas dúvidas
que nós fomos captando de diversos hospitais, de colegas e que são angustiantes.
Como eu falei os manuais e notas técnicas de orientação da ANVISA são
imprescindíveis para nos dar um direcionamento, mas como o Jaime bem colocou
nós vamos dormir hoje e não quer dizer que amanhã não surja uma nova orientação
internacional baseada em dados epidemiológicos que nos dê um outro rumo e isso
a gente vai mantendo atualizado. Jaime, uma questão que é um grande desafio
dentro dos estabelecimentos de saúde (em especial os hospitais onde congrega os
pacientes mais críticos) é: o que hoje tem de mais concreto na forma de
transmissão do vírus? Em especial sobre a Nota Técnica 06 da ANVISA, onde foram
introduzidos, além das formas de transmissão mais conhecidas que a gente já
vinha trabalhando, também alguns procedimentos cirúrgicos.
Jaime Rocha: Vou separar em dois momentos. Vou
começar pela transmissão e depois entro na questão cirúrgica. Nós temos ainda
alguns dogmas na medicina. Ou a doença é gotícula ou a doença é aerossol. Esta
doença (COVID) estamos colocando no meio termo, porque na verdade se você
observar a classificação dela ainda é gotícula, e se ela é gotícula, a gente
não precisa de N95, então tem alguma coisa errada na nossa conduta. Nós
começamos a enxergar aspectos de “aerossolização” que a gente não enxergava
antes, ninguém aqui tinha visto vídeos dinâmicos de tosse e espirros antes
disso. Nós até começamos a pensar no quanto podíamos ter pecado para menos no
H1N1, o quanto a gente esteja errando na tuberculose e em outras doenças.
Porém, falando do
coronavirus, ele é ainda classificado como gotícula, ou seja, perdigotos que caem
e não ficariam suspensos no ar. É o que caracteriza o aerossol, mas nós temos
procedimentos como a intubação, broncoscopia, endoscopia que acabam gerando
aerossol que pode ficar suspenso no ar durante mais tempo. Também começaram a
surgir várias evidências de que o vírus pode, na gotícula, ficar pequeno.
Começaram a surgir vários dados que fizeram com que tomássemos medidas
práticas. Na medicina, quando a gente não sabe o que fazer, temos que seguir
três princípios hipocráticos: o primeiro é não fazer o mal, mas não no sentido
de remédios errados, diagnósticos errados; o segundo principio é fazer o bem,
ou seja tentar fazer o que a gente tiver de melhor naquele momento à disposição;
e o terceiro eu vou traduzir como o que a gente tem que fazer, que na
verdade é chamado de princípio de moralidade do agente de saúde, seja um médico,
farmacêutico ou enfermeiro que tem um paciente na sua frente e um dilema do
tipo “se eu preciso disso ou não preciso disso”.
Nós tivemos que tomar
decisões e as decisões foram pautadas no bom senso, ou seja, você vai atender
um paciente diretamente? Então vamos tentar usar os meios de proteção habitual
para gotículas, mas se você vai fazer um procedimento com grande aerolização é
necessário usar os meios que utilizam para aerossol. Daí tem a questão da
escassez, então começamos a utilizar protetores faciais com dupla função. Passando
esta fase de ignorância e pavor, nos viríamos acompanhar as curvas de alguns
lugares do país que não foram acometidos, e em seguida estudar uma possível
retomada das atividades da área de saúde, entre elas a cirurgia.
Aqui em Curitiba, por
exemplo, os hospitais privados estavam mantendo uma ocupação abaixo de 40%,
eles não estavam conseguindo pagar a conta da folha e começando a ter demissões
e fechamento, então eles pedem pra voltar a ter cirurgias eletivas e a pergunta
é: existe segurança em operar alguém neste momento? Nós temos que criar uma
série de conjuntos de normas e regras que tentem não fazer o mal, fazer o bem e
acima de tudo tomar uma decisão. Não é possível generalizar isso para o país
como um todo, tem lugares que não é possível, não tem vaga, por exemplo. Deve
ser feito um estudo de como está seu estado e principalmente sua cidade e sua
macro região, depois vai para questões de estrutura como disse a Silvana. As
pessoas que tentaram começar essa discussão basicamente diziam o seguinte: a
gente faz o PCR no pré operatório ou não?
Isso é apenas um dos
pontos. Não adianta fazer todas as coisas e não ter EPI, não ter pessoas para
operar ou ter tudo isso e as pessoas estarem angustiadas, nervosas. Tem
hospital que montou tudo isso, porém os pacientes não quiseram ir para lá. Teve
hospital que o paciente queria ir, mas a equipe de cirurgia não queria operar.
E ainda teve caso que todos queriam, mas a administração não queria. Então tem
que alinhar interesses, e a norma tenta trazer várias perspectivas de pontos
diferentes e servir como um mapa, onde você tem as coordenadas, porém podem ser
traçadas várias rotas. Não existe uma receita única, porque vão sempre surgir
perguntas novas.
Tania Grillo: Silvana, essas formas de transmissão
impactam diretamente em orientações de proteção da disseminação e da exposição
em especial de trabalhadores e das pessoas em geral. Como estão, dentro da Rede
MaterDei, esses procedimentos de risco de aerossolização e a orientação geral
para a proteção dos profissionais de saúde?
Silvana Ricardo: Nós tivemos que descobrir
procedimentos e revisar uma série de coisas. Também mudamos questões
administrativas que foram mais extensas e amplas, porque a gente foi desde a micronebulização
usual da enfermagem para procedimentos com riscos diferentes.
Essa questão da segurança
do profissional é fundamental para que eles possam trabalhar. Hoje, os
hospitais privados em sua grande maioria têm o perfil cirúrgico e nós temos que
estar preparados para continuar mesmo com o Covid. A vida mudou para agregar as
rotinas de Covid. Então nós criamos um time de intubação – que era um sonho
antigo para atendimento – desta forma treinamos a equipe, fizemos vídeos e simulação
de paramentação.
Tania Grillo: Essa epidemia nos mostra que todas
as diretrizes anteriores de controle de infecção hospitalar estão absolutamente
válidas e devem ser reforçadas somando os novos conhecimentos. Com a
melhoria da tecnologia, aquilo que achávamos que era só uma gotícula, na verdade
pode ter seu componente de aerossol, porque a tecnologia nos permite aprender
mais. Daí vem uma variável que que é o exame PCR, que eu gostaria de saber como
vocês estão trabalhando.
Jaime Rocha: O PCR é o exame para fase de doente,
fase aguda. Então o ideal do PCR é do d0 ao d7. Nós temos pacientes que ficam
positivo muito além do que isso e a gente recomenda afastar por 14 dias, porque
isso é uma média histórica. Mas, tem paciente com até 30 dias positivo para Covid.
Tania Grillo: Jaime, existe uma pergunta que não
poderíamos deixar de fazer que é sobre a hidroxicloroquina.
Jaime Rocha: Eu utilizo uma linha chamada de
medicina baseada em evidência. Não havia e não há ainda evidencias que sugiram
o uso. Hoje a minha recomendação e a minha sugestão para quem segue a linha de
medicina baseada em evidência é não utilizar.
Você pode assistir à gravação desse e de outros programas “DRG Brasil Convida”, na íntegra, acessando o canal do Grupo IAG Saúde no Youtube.