Ferramenta ajuda a calibrar o nível de isolamento social de uma cidade
DRG Brasil
Postado em 29 de maio de 2020 - Atualizado em 28 de setembro de 2023
NESCON/UFMG desenvolveu modelo de acompanhamento nacional da epidemia ajustado pelo nível de isolamento social. Ferramenta ajuda a prever a evolução esperada da pandemia no Brasil, dizer se teremos necessidade de implantar o lockout e, se sim, onde e quando ele ocorrerá.
Renato Couto: A epidemia da Covid-19
apresenta como grande diferencial a elevada infectividade do vírus. A doença se
espalha rapidamente na população, por isso temos simultaneamente muitas pessoas
doentes. As pessoas morrem pela doença, mas podem morrer por falta de recursos
de ventilação. Mesmo que existam recursos não há disponível no mundo tantos
ventiladores, logo temos que evitar o crescimento rápido da epidemia pelo
isolamento social. A ferramenta do NESCON ajuda a “calibrar “o nível de
isolamento social de uma cidade?
Francisco Cardoso: Sim. Avançamos na
construção do modelo, inicialmente incorporado numa simples planilha de Excel®,
pela urgência em que nos encontrávamos em março, não havendo tempo hábil à
época para o desenvolvimento de um sistema informatizado em uma plataforma mais
robusta. Ao aprimorar a ferramenta, incorporamos um modelo epidemiológico do
tipo SEIRS, que permite simular o impacto das taxas de “isolamento social” no
curso da epidemia. Estamos também em busca de dados do movimento dos pacientes
nos leitos para calibrar melhor o modelo, tanto da primeira “onda” da epidemia,
quanto das outras que certamente advirão.
Renato Couto: Essa ferramenta
desenvolvida pelo grupo de pesquisa que você coordena no NESCON permite fazer
várias estimativas sobre eventos relacionados à epidemia da Covid-19. Que tipo de
eventos o modelo permite prever?
Francisco Cardoso: Nosso grupo vem
trabalhando há alguns anos na modelagem matemática de várias dimensões do
serviço de saúde, com o objetivo de estimar as necessidades de saúde que são
convertidas em critérios e parâmetros para o planejamento e a programação dos
serviços de saúde. Temos trabalhado junto ao Ministério da Saúde desde 2011
nessas estimativas de necessidades assistenciais, que resultaram na publicação
da Portaria 1631 de 2015, que lançou um “Caderno de Parâmetros”, que os
gestores do SUS utilizam para realizar o planejamento e a programação dos
serviços, no âmbito da Programação Pactuada e Integrada – PGASS.
Logo no início da epidemia, criamos
um modelo de localização ótima de tomógrafos, um equipamento importante para o
diagnóstico da pneumonite causada pela Covid-19. Esse modelo se baseou em
outros que temos desenvolvido em parceria estratégica com o grupo da Engenharia
de Produção da UFMG, liderado pelo Prof. Luiz Ricardo Pinto, com quem tenho
trabalhado desde 2013 na aplicação de métodos da Pesquisa Operacional, como a
simulação e localização/alocação de estruturas assistenciais como equipamentos
médico hospitalares de custo mais elevado, bem como de médicos especialistas e
outros dispositivos. Uma parte dessa produção está exposta no site do LABDEC,
um laboratório que reúne a equipe do GPES (Grupo de Pesquisa em Economia da
Saúde), coordenado pelas Profas. Eli Iola Gurgel e Mariângela Cherchiglia, os
professores e alunos do DEP/UFMG e da Faculdade de Farmácia. O Labdec tem
também participação do Prof. Márcio Augusto Gonçalves, do CEPEAD/FACE/UFMG, na
modelagem e simulação dos valores de custeio global para hospitais, isto é,
gerando uma estimativa de quanto custaria um hospital específico, dados seus
atributos como número de leitos, perfil de Recursos Humanos, tipos de serviço,
porte etc.
Quanto ao modelo da epidemia da Covid-19
iniciamos, ainda em meados de março, o desenvolvimento de uma ferramenta que
ajudasse os gestores estaduais, principalmente, mas também os gestores
municipais, no planejamento emergencial da assistência aos casos mais graves,
realizando estimativas da quantidade de leitos gerais e de UTI necessários, o
momento em que esses leitos eventualmente iriam congestionar, o período
provável do “pico” da epidemia e o déficit de leitos máximo nesse momento. O
modelo é baseado numa curva logística diferencial, que é ajustada dia a dia com
o número diário de casos nos últimos 7 dias. Essa estratégia de ajuste permite
calibrar o modelo num quadro que muda a cada momento, cada Região de Saúde
enfrentando estágios diferenciados da evolução da epidemia.
Como a primeira versão do modelo foi
divulgada ainda em março passado, ela possibilitou a muitos gestores preverem
com uma certa antecedência, os recursos mais críticos, como os leitos de UTI.
Renato Couto: Me fale um pouco da
relação entre a UFMG e o NESCON.
Francisco Cardoso: O NESCON, Núcleo
de Educação em Saúde Coletiva, é um centro de pesquisa e extensão que foi
criado em 84 pelo Prof. Benedictus
Philadelpho de Siqueira. Iniciou sua atuação como um grupo de
pesquisadores voltado para estudos no campo da nutrição no Vale do
Jequitinhonha e passou a ser assumido pelo Prof. Francisco Eduardo de Campos,
em 1986, como um dos núcleos de apoio à Reforma Sanitária, participando da
formulação do SUS e da formação de Recursos Humanos e de pesquisas para apoiar
a implantação do novo Sistema Nacional de Saúde. Nesses 34 anos tem atuado,
continuamente, como instituição que reúne membros da academia e dos serviços de
saúde, que é o meu caso, pois sou funcionário do quadro permanente da
Secretaria de Estado da Saúde, em projetos de pesquisa, desenvolvimento
tecnológico e de cursos de capacitação para apoiar os três níveis de governo na
organização e gestão do sistema.
Renato Couto: Francisco, tanto na
mídia, quanto na Internet, foram divulgados vários modelos preditivos do
comportamento da epidemia da Covid-19. Em que o modelo que desenvolveram se
diferencia dos demais?
Francisco Cardoso: Renato, também estamos
acompanhando os vários modelos, desenvolvidos tanto por Universidades Públicas
quanto por entidades privadas.
O modelo que desenvolvemos, a meu
ver, diferencia-se dos demais por ser uma ferramenta à disposição dos gestores,
que eles podem baixar na Internet e ajustar os parâmetros de entrada, como
número de leitos de UTI disponíveis, parcela dos casos graves que estão sendo
internados e mesmo o numero de casos observados em seu município ou região,
sempre que ele tiver um dado melhor que aquele que conseguimos obter, com muita
dificuldade nos sistemas de informação oficiais. Portanto, o diferencial da
ferramenta é sua possibilidade de adaptação aos diversos contextos, pois a
epidemia está se expressando de variadas formas, em cada local.
Renato Couto: Observamos em alguns
modelos disponibilizados na Internet uma demanda muito alta de leitos de UTI
para o atendimento dos pacientes críticos com Covid-19. Qual foi a necessidade
que seu modelo indicou?
Francisco Cardoso: Nós criamos um
modelo matemático, cujas curvas são atualizadas com os dados dos casos dos
últimos 7 dias. Isso porque o comportamento da epidemia vai se modificando com
passar do tempo. Muitos modelos claramente superestimaram em muito a
necessidade de leitos de UTI, alguns chegaram a prever uma necessidade de mais
de 45 mil leitos novos!
Na verdade, houve um equívoco entre
os pesquisadores, que previram um percentual muito alto da população que teria
manifestações mais graves, que demandariam cuidados pelo sistema de saúde, da
ordem de 10% da população total. Verificando o que aconteceu em outros países,
observamos que essa taxa era bem menor, de cerca de 1 a 2% da população, esse
último, inclusive seria o pior cenário. Estamos verificando na prática que em
muitos locais, como é o caso de Belo Horizonte, esta taxa será provavelmente
menor que 0,5%, talvez próxima de 0,2%. Essa diferença é brutal, em termos de
projeção de necessidades de leitos! A última atualização do nosso modelo indica
uma necessidade máxima de leitos de UTI novos da ordem de 23.900 leitos,
considerando-se uma expectativa de 1% de casos mais graves na população. Este
número cai para 8.300 leitos se o número de casos graves no pico da epidemia
for de 0,5%, que é um cenário que estamos trabalhando.
Lembre-se de que muitos municípios e
estados ampliaram os leitos de UTI, cujos dados disponíveis no site do
Ministério da Saúde já foram incorporados. Daí a importância de os gestores
calibrarem os parâmetros à sua realidade, pois esses números podem ser
diferentes em cada contexto.
Renato Couto: Quais são os próximos
passos que vocês pretendem dar, em relação à evolução dessa ferramenta?
Francisco Cardoso: Estamos
reprogramando todo o sistema e incorporando um modelo SEIRS, que permite
simular os efeitos de diversos níveis de distanciamento social, o que possibilitará
aos gestores um maior número de informações para apoiá-los nesse momento tão
difícil. O novo sistema, além do seu uso livre e gratuito para qualquer gestor,
vai permitir sua integração com outros sistemas de informação e a geração de
análises automatizadas para estados, municípios e serviços de saúde privados,
como Planos de Saúde, terem acesso a um conjunto atualizado de informações do
comportamento da epidemia e dos recursos necessários para seu enfrentamento,
tanto nessa primeira “onda”, quanto nas que se seguirão, quando o
distanciamento social for relaxado.
Renato Couto: Isso quer dizer que vocês
estão transformando a ferramenta num dispositivo que pode oferecer um novo
serviço aos gestores públicos e privados, mais do que um modelo matemático
estanque e perdido no tempo?
Francisco Cardoso: Exatamente. A
proposta é orientarmos nossa elaboração para um sistema que possa evoluir com
novas aplicações que possam ser uteis tanto no período mais crítico da epidemia
como fora dele, na forma de um serviço a ser prestado aos gestores
interessados.
Renato Couto: Uma parte da sua
história pessoal está descrita abaixo, para que nossos leitores possam
conhecê-lo melhor. Com isso tudo feito, já conseguiu mudar o mundo?
Francisco Cardoso: Renato, julgo que hoje o SUS é um grande sistema de saúde, universal, com estruturas assistenciais capilarizadas por todo o país, e que mostrou, apesar do seu desfinanciamento crônico e pouco prestígio junto a amplos setores da sociedade brasileira, como a grande estrutura de apoio para a maioria da população no enfrentamento dessa terrível manifestação, no nível da saúde das pessoas, de mazelas econômicas e sociais globais. Portanto, sim, acho que contribuí modestamente, à minha maneira, fazendo ciência e desenvolvendo tecnologias adequadas para apoiar a gestão pública. Considero meu sonho, ao menos em parte, realizado. Não mudei muito o mundo, mas contribui um pouco na sua mudança. Espero poder continuar contribuindo por mais algum tempo...
Francisco “Chico Poté” Cardoso formou-se médico pela Faculdade de Ciências Médicas de MG em 1982.
Resolveu que queria trabalhar no interior, na época muito envolvido com as perspectivas suscitadas pelo processo de redemocratização do país. Participou de um movimento de estudantes de medicina que que buscavam aliar o trabalho como médicos ao movimento da sociedade no sentido de contribuir com as mudanças mais profundas na estrutura social. Havia já uma grande clareza no sentido de ver as doenças como uma manifestação de relações sociais injustas e que precisavam ser modificadas. Foi, então, trabalhar como médico da Atenção Primária em Poté, pequena cidade do Vale do Mucuri – seu primeiro passo na Saúde Pública, anterior ao SUS, tendo vivenciado no nível local as Ações Integradas de Saúde. Essa experiência o despertou para a importância da organização do sistema de saúde, de sua gestão. Em 87 iniciou a Residência Médica em Medicina Preventiva e Social, na Faculdade de Medicina da UFMG, fazendo estágio no NESCON, onde teve sua iniciação ao planejamento, engajando-se na elaboração das POI (Programação e Orçamentação Integrada) e as PROS (Programação e Orçamentação da Saúde), processos que o aproximaram do Ministério da Saúde. Desde essa época, vem trabalhando na elaboração dos processos de programação em saúde, participando da PPI (Programação Pactuada e Integrada) e, mais recentemente, na coordenação da equipe de pesquisadores que elaboram os parâmetros de necessidade em saúde. Francisco tem trabalhado, atualmente, na modelagem matemática de questões relacionadas ao sistema de saúde, produzindo evidências que possam apoiar a construção de critérios quantitativos para o planejamento.
Sua vida mudou muito nos últimos dois
anos, quando nasceu seu filho do segundo casamento, o Otaviano, um menino muito
esperto e com grande vivacidade, que trouxe um novo impulso e novas energias
para que o médico e pesquisador continue na caminhada.
Direitos autorais: CC BY-NC-SA Permite o compartilhamento e a criação de obras derivadas. Proíbe a edição e o uso comercial. É obrigatória a citação do autor da obra original.
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